quinta-feira, 6 de maio de 2010

O Ouro do Mediterrâneo...


O menino seguia com muita atenção a gota grossa amarelo dourada que escorregava devagarinho, como quem tem todo o tempo e sabedoria do mundo, por entre os sulcos vidrados do galheteiro, já velhinho, da avó. Deslizava suavemente, dobrando com muito cuidado cada esquina, como quem tivesse medo de cair e se perder… De repente, quase parou na fundura de um vinco mais marcado ali, exactamente onde a faixa atrevida de sol ardente, que tinha conseguido esgueirar-se por entre o cortinado, já velhinho, da avó, a fez brilhar em chispas de luz.


O menino levantou-se, de súbito, para chegar mais perto e mergulhou o olhar até ao fundo daquele lago de luz dourada e… viu oliveiras de mil anos, espalhadas por montes e vales, viu mil azeitonas verdes, castanhas, pretas, e viu um fio grosso de azeite dourado que ganhou vida e, numa bolha grossa, lhe disse em surdina, como quem conta um segredo:

- “Eu sou o Ouro do Mediterrâneo.

Sabes, há muitos, muitos anos, veneravam a minha árvore, a oliveira, em cuja sombra se acolheram, nas encostas do Mediterrâneo, da Grécia à Tunísia, filósofos, artistas, matemáticos, poetas e viajantes que, juntos, foram tecendo as malhas da cultura da Europa do Sul, que é ainda a tua.
E durante muitos, muitos anos, mais de três mil, guardaram-me, ano após ano, em grandes e pesadas talhas de barro, no local mais íntimo e secreto de suas casas – é assim que se acautelam os tesouros – para comigo regarem, em artes de feminino feitas, ervas, legumes, peixes e pão, e, queimando-me, espantarem, das suas noites, a escuridão.

E eu, de tão amado, acreditava que seria assim até ao fim dos tempos. Mas não.
Sabes, houve uma guerra – terá sido a maior de todas, diziam – que deixou as gentes muito alteradas. Nada ficou como antes. As ideias, hábitos e costumes agarraram-se as franjas dos ventos e correram, muito depressa, espalhando-se por todo o lado – sabes, as franjas do vento são muito mais velozes que as ondas do mar – e por aqui, nestas terras minhas do Mediterrâneo, foram, assim, aparecendo uns líquidos gordurosos, de vários tipos, a princípio, de mansinho, como quem está envergonhado, mas rapidamente pressenti a dimensão do seu atrevimento e da minha desventura.

Começaram por me roubar a luz da noite. As candeias ficaram esquecidas, vê bem, algumas vezes ao lado das minhas talhas. E na escuridão chegavam-nos, longínquos e apagados, os sons da alegria, ou da intimidade, que já tinham sido nossos.
Mas o pior foi quando, uns tempos mais tarde, chegaram, com grande alarido, e vindos de terras, para mim muito estranhas, uns óleos que morriam de inveja de mim. Fizeram de tudo para convencerem as gentes minhas do Mediterrâneo, que eles seriam, mesmo melhores que eu na fritura, no tempero, na caldeirada, e - céus! - até na sopa e salada se atreveram a entrar. E muitas das minhas gentes – sabes como gostam sempre muito de tudo o que vem de outras paragens, as minhas gentes – acreditaram neles, coitadas. E, coitado de mim também, que fui ficando, cada vez mais tempo, no fundo das talhas, a meio dos garrafões, e até nos lagares, antes de ser eu mesmo, se foram esquecendo de mim.

Sabes, não há mentira nem disfarce que sempre dure. O tempo faz a verdade vir ao de cima, como eu próprio se me misturam com água. E há sempre quem – muito poucos é certo – goste de pensar por si mesmo, de procurar provas para fundamentar conclusões, cientistas investigadores, dizem. E lembraram-se de mim, de investigar, cientificamente, o que eu, desde a noite dos tempos, havia dado, sem eu próprio o saber, aos habitantes da bacia do Mediterrâneo que tanto me cuidavam.

E sabes o que, sobre mim, descobriram?
Sabes o que te posso oferecer quando me escolhes para me levares contigo, todos os dias?
- Melhoro a digestão e evito a azia que sentes quando escolhes outros em vez de mim para temperar ou cozinhar;
- Ajudo o fígado e a vesícula a eliminarem o lixo do teu sangue, e até empurro algumas areinhas antes que se atrevam a ser pedras com o nome, pretensioso, de litíase;
- Comigo, o intestino consegue despachar-se com mais facilidade;
- Ainda aí, faço um trabalho permanente – e como fico cansado! – para impedir o colesterol de voltar para trás. Assim consigo, sem que ninguém desconfie, mantê-lo baixo apesar dos disparates que os homens grandes fazem quando comem;
- Nas artérias vou impedindo que se atulhem e entupam; por isso, dizem que sou amigo do coração;
- A pele, torno-a mais brilhante e macia e atraso a chegada das rugas, ainda melhor quando me usam em cremes de beleza;
- Nas articulações diminuo as inflamações, que é como quem diz, as dores e o desgaste;
- E por todo o lado, mesmo nos sítios mais escondidos e pequeninos no interior das células, elimino com muito vigor os radicais livres de oxigénio. Eu nem sei bem o que são, mas ensinaram-me, que eles agridem e envelhecem todo o corpo. Por isso são maus para ti e eu sou capaz de te defender.

Não achas que tenho razões para estar muito orgulhoso?

Agora, que sabem tudo isto sobre mim, sou olhado muito respeitosamente. E, confesso, não disfarço a vaidade com que me aprumo, dentro de garrafas lindíssimas, feitas expressamente para mim, quando me colocam no lugar de maior destaque da mesa de quem, profundamente, me aprecia ou me derramam – com rituais quase iniciáticos – sobre iguarias de cozinha de autor por todo o mundo, muito para além do meu querido…”
E a gota foi engrossando, engrossando e quase caía, quando o menino, num gesto rápido de aflição, a agarrou com a ponta dos dedos trémulos, agora do tanto que sabia, e de olhos fechados a levou à boca, deliciado, mas ainda lhe pareceu ouvir “… Mediterrâneo”.

Cristina Sales
Texto publicado na Revista Ovibeja 2009

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